quinta-feira, 2 de abril de 2015

A matança dos cananitas


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O trecho abaixo é extraído de meu livro: "Deus é um Delírio?"
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Chegamos agora à cereja do bolo de Dawkins, que parece ser exatamente onde ele queria chegar: a religião. Todo o resto do livro parece ser uma cortina de fumaça para chegar a esta parte, onde ele se arma até os dentes contra a Bíblia, contra a religião, contra a fé, contra Deus, contra tudo. O que ele esbraveja neste capítulo é um amontoado daquilo que vemos pipocando todos os dias na internet, na boca de todos os neo-ateus em fóruns de discussão, em vídeos neo-ateístas no YouTube e até em debates políticos.

No livro de Dawkins, o Deus do Antigo Testamento é retratado como um Darth Vader da ficção, um monstro de uma crueldade sanguinária, e em seu nome um grupo de pessoas se reuniu para escrever um livro racista, homofóbico, xenofóbico, genocida e malévolo, chamado Bíblia. Paradoxalmente e sem qualquer explicação racional, este mesmo Darth Vader do Antigo Testamento é crido por mais de dois bilhões de pessoas – 32% da população mundial –, que veem neste ser tão horrível e cruel uma fonte de consolo e salvação.

E para provar que este terrível Deus judaico-cristão mitológico é mesmo alguém tenebroso, perverso, assombroso e tirânico, Dawkins cita doze passagens de Levítico e Deuteronômio e outras duas de Juízes, pois até hoje ninguém lhe avisou que existem outros 63 livros na Bíblia, que ele não abriu. Começaremos então refutando os factóides de Dawkins contra este Santo Graal das Trevas e Supra-Sumo do Mal: as Escrituras.

Dawkins ataca o Antigo Testamento como um lutador cego, que não sabe onde está o seu oponente, mas desfere golpes assim mesmo para todos os lados, para numa dessas acertar alguém. Desde cedo é patente a falta de conhecimento bíblico que o autor possui. Isso nós já vimos no capítulo 4 deste livro, quando refutei o amontoado de factóides que Dawkins juntou para atacar alguns pontos da Bíblia. Mas aqui ele ultrapassa todos os limites da ignorância. Como Alister bem observou, “quando Dawkins menciona que Paulo escreveu a epístola aos Hebreus, você já percebe quão ruins as coisas estão”[1].

A estratégia que Dawkins usa aqui é aquela bem conhecida dos neo-ateus no mundo todo, que se baseia em juntar o máximo de passagens de Levítico que não encontram base no mundo e na cultura atual e então acusar os cristãos de apedrejarem homossexuais e os que não guardam o sábado, de apoiar a escravidão, de ser a favor do genocídio e de ser intolerante com as demais crenças. Isso resume toda a artilharia de Dawkins neste capítulo.

Mas o primeiro grande disparate de Dawkins é a confusão imensa que ele faz entre descrição e prescrição. Ou ele não sabe a diferença (e portanto fugiu das aulas mais básicas de linguagem), ou então engana o leitor de forma deliberada (e neste caso é desonesto mesmo). Se, por exemplo, eu digo que em 11 de Setembro dois aviões atingiram as Torres Gêmeas, eu não estou fazendo uma apologia ao terrorismo, mas somente uma descrição do acontecimento. Se eu digo que houve um estupro coletivo em uma universidade[2], eu não estou incentivando ninguém a estuprar ninguém, mas somente descrevendo o que aconteceu naquela ocasião. Isso é uma descrição.

Prescrição, por outro lado, é o ato de ordenar algo a alguém. Se eu digo: “destruam aqueles prédios” ou “estuprem aquelas pessoas naquela universidade” eu não estou descrevendo nada, mas sim prescrevendo algo, e neste caso sim eu sou responsável por aqueles acontecimentos. Há, portanto, uma absurda e colossal diferença entre descrição e prescrição, que Dawkins ignora completamente ao longo de toda a sua argumentação, e que eu duvido muito que seja apenas por ignorância das regras básicas da linguagem.

Por exemplo, Dawkins coloca “na conta de Deus” os pecados de Abraão e de Moisés, o erro de Jefté que sacrificou sua filha, a loucura de Ló em oferecer suas filhas aos sodomitas, a insanidade das filhas de Ló em se deitarem com o pai, o estupro da concubina do levita e sua indiferença ao ato, e assim por diante. Mas nada disso é prescrição, e sim descrição. Talvez Dawkins se assuste em ouvir isso: Abraão era humano como nós. Talvez ele se espante ainda mais em ouvir isso: ele era pecador. E provavelmente ele deveria mesmo é se apavorar com o fato de que os escritores bíblicos, ao invés de fantasiarem uma história e mostrarem os personagens bíblicos perfeitinhos, eram fieis aos acontecimentos e retratavam até mesmo os mais horríveis pecados dos mais notáveis homens.

Assim, o “argumento” que Dawkins levanta contra a Bíblia, na verdade, volta-se contra ele mesmo. Ele prova que se os escritores bíblicos estivessem inventando uma história eles não incluiriam os piores defeitos de Abraão, Moisés ou Davi, mas somente escreveriam coisas lindas e maravilhosas sobre eles, que fizessem com que o povo somente os admirassem. Mas não. Eles fizeram questão de serem fieis aos acontecimentos e de retratarem a verdade conforme a verdade é. Eles não fantasiaram uma história, e é essa a razão pela qual Dawkins pode encontrar tantos defeitos e pecados quanto qualquer cristão pode encontrar ao ler as Escrituras. Esta é outra razão pela qual a Bíblia é confiável: ela retrata pecadores, não santos.

À lista de Dawkins eu poderia lhe sugerir que acrescentasse também o adultério de Davi com Bate-Seba e o assassinato de seu marido Urias, o homicídio cometido por Moisés contra o egípcio (que motivou sua fuga ao deserto), o apóstolo Paulo que era o maior perseguidor da igreja antes de ver Jesus em Damasco, as três negações de Pedro e a repreensão que ele sofreu de Paulo em Antioquia, os irmãos de José que tentaram matá-lo, as mentiras e trapaças de Jacó, a idolatria e apostasia de Salomão, a promiscuidade de Sansão e dos filhos de Eli, a briga entre Paulo e Barnabé, a incredulidade de Tomé e até a mãe de Jesus e seus irmãos que achavam que ele estava louco (Mc.3:21,32).

O que é que isso tudo prova? Que a Bíblia aprova estas atitudes erradas, mesmo quando cometidas pelos maiores personagens da Bíblia? É claro que não. Isso só prova a fidelidade da Bíblia no registro dos acontecimentos, sem embelezamento, a verdade nua e crua. Diferente das estórias e mitos pagãos da antiguidade, os personagens da Bíblia são tão humanos e pecadores quanto eu e você. Dawkins, no entanto, mistura prescrição e descrição como se fosse uma coisa só, coloca tudo na conta de Deus e, é claro, culpa os cristãos por tudo isso. Sua distorção é tão flagrante que é realmente impossível acreditar que seja fruto apenas de ignorância, e não de desonestidade intelectual deliberada.

Algo semelhante aconteceu aqui no Brasil, quando um certo “irmão Rubens”, que eu até admirava antes de vê-lo dizer tamanha bobagem de deixar qualquer um de queixo caído, gravou um vídeo chamado “A Bíblia Mente”[3], onde o seu único argumento para dizer que a Bíblia é mentirosa é que ela descreve algumas mentiras ditas por certos personagens bíblicos. O illuminático[4] concluiu então que a Bíblia está mentindo, que é uma farsa, uma fraude, uma mentira. Na época eu não tinha quase nenhum conhecimento teológico, mas só o pouco de lógica que eu já conhecia já tinha sido suficiente para ficar estupefato com tamanha aberração.

A afirmação de que “a Bíblia mente” sob este argumento é semelhante a um livro de história dizer que os militares mentiram quando prometeram um presidente civil após o Golpe de 64, e que por causa disso aquele livro de história mente. Uma pessoa com um raciocínio um pouco mais apurado conseguirá facilmente concluir que não é o livro de história que está mentindo, porque ele está descrevendo ao invés de prescrevendo. Ele está dizendo a verdade de que aquela certa pessoa mentiu. Ele estaria mentindo somente caso não registrasse a verdade dos acontecimentos, i.e, se tivesse dito que os militares disseram a verdade – aí sim o livro estaria mentindo.

Dawkins faz confusão semelhante, embora em nível bem maior do que o “irmão Rubens”, porque não fala de um acontecimento isolado, mas de muitos.

Há, contudo, algumas coisas citadas por ele que são mesmo prescrições e que merecem nossa observação. A maior e mais notável delas são os registros onde Deus manda Israel atacar e destruir nações inteiras. Isso é chocante, mas não mais que as duas guerras mundiais, ou o confronto milenar entre palestinos e israelenses, ou a Guerra dos Cem Anos, ou a invasão do Iraque e do Afeganistão, ou as Guerras Médicas, ou a Guerra do Peloponeso, ou as Guerras Púnicas, ou a Guerra de Secessão e as milhares de guerras civis que já existiram, ou as centenas de batalhas pela Independência de diversos países, ou as Revoluções do século XX, ou a Guerra da Tríplice Aliança, ou qualquer outra guerra na história da humanidade.

Dawkins precisa entender: guerra é guerra, e em guerra pessoas morrem. Mas ele exagera de tal maneira que parece que as únicas batalhas na história do mundo foram as de Israel, e que as únicas mortes que já existiram foram em nome de Deus. Talvez a diferença seja que neste caso específico tenha sido Deus que prescreveu a guerra – diferente das outras, que foram ordenadas por homens – mas mesmo assim o princípio permanece o mesmo. A guerra, seja ela de Deus ou dos homens, só é justificada se houver razões muito boas para tanto, i.e, se o mal causado pela guerra é menor do que o dano que se causaria se nada fosse feito.

Então a questão principal aqui é: as guerras de Israel eram justificáveis? O dano causado pela guerra foi maior ou menor do que o dano que seria causado se nada fosse feito? Antes de continuar, convém mencionar que eu não estou dizendo que a guerra em si não é má. Toda guerra é má, toda morte é triste, todo sofrimento é lamentável, e todos, em qualquer lugar, tem o dever de zelar pela paz no mundo. Não estou falando que a guerra é boa. A questão não é essa. A questão é se a guerra não é, às vezes, um mal necessário, para evitar um mal maior.

Isso já foi tratado no capítulo anterior, mas convém novamente mencionar que algumas guerras são mesmo necessárias, por pior e mais trágico que uma guerra seja. Para usar um único exemplo e não cansar o leitor, imagine se ninguém fizesse nada contra Hitler e suas várias fileiras de soldados nazistas. O extermínio de seis milhões de judeus em campos de concentração (onde também eram cruelmente torturados) era só o começo. Hitler fez isso sem ganhar a guerra. Se ele fez tudo isso sem ganhar a guerra, imagine o que ele teria feito se a tivesse ganho!

O mundo dominado pelos nazistas seria um mundo onde todos os judeus, homossexuais, ciganos, negros, deficientes físicos e débeis mentais seriam assassinados friamente sem pensar duas vezes, e o que restaria no mundo seria tão altivo, arrogante e de mau caráter (para aceitar as atitudes dos nazistas sem combatê-los) que o mundo caminharia para a autodestruição. Podemos dizer, então, que o que os Aliados fizeram foi necessário.

Sim, muita gente morreu na guerra. Muitíssimo mais do que Israel matou, inclusive. Mas seria muitíssimo pior se ninguém levantasse oposição e se todos dessem carta branca a Hitler e a SS. Qualquer oposição a Hitler resultaria numa reação deste, e uma guerra seria inevitável. Foi o que aconteceu, e por causa da guerra você tem a sorte de estar lendo este livro agora em um país livre, que não sai à caça de qualquer um que discorde da ideologia nazista. Então, sabendo que guerras são justificáveis pela tese do mal menor, cabe a nós responder a segunda pergunta: as guerras ordenadas por Deus em Canaã foram justificáveis?

A primeira coisa que devemos ter em mente é o tipo de cultura daqueles povos. A melhor investigação histórica já produzida a este respeito é o livro Is God a Moral Monster? (Deus é um Monstro Moral?), do Dr. Paul Copan. Seu trabalho foi considerado por Richard Davidson como a mais poderosa e coerente defesa do caráter de Deus no Antigo Testamento diante dos ataques dos neo-ateus, e por Gordon Wenham como a melhor defesa da ética do Antigo Testamento. Ele compara diversas práticas do Antigo Testamento com as práticas consideradas legais em Canaã.

Em Israel, por exemplo, o sacrifício humano era completamente proibido, e era considerado assassinato. O mesmo não acontecia nos povos cananeus, que tinham como costume os rituais de sacrifício infantil, onde um pai entregava seu filho pequeno (geralmente o primogênito) nas mãos de um sacerdote de um dos vários deuses pagãos e o sacrificava no altar, ou o queimava em oferenda. Esta prática monstruosa não era nem um pouco incomum naqueles povos, que viam com bons olhos o sacrifício de crianças, desde que fosse em honra aos ídolos.

Além de o infanticídio ser considerado normal, a prostituição cultual também era muito comum. Os prostitutos e prostitutas cultuais em Canaã serviam nos templos pagãos, em especial nos cultos da fertilidade, praticando atos sexuais no templo como parte do culto ao deus pagão que serviam. Escavações arqueológicas mostraram que seus templos eram centros de orgia, de sodomia e de prostituição. O historiador Henry H. Halley assim se expressou após observar as descobertas arqueológicas ao escavar a área:

“Encontraram grande quantidade de jarros contendo os despojos de crianças que tinham sido sacrificadas a Baal (...) A área inteira se revelou como sendo um cemitério de crianças recém-nascidas (...) Era assim, praticando a licenciosidade como rito, que os cananeus prestavam seu culto aos deuses, e também assassinando seus primogênitos como sacrifício aos mesmos deuses. Parece que, em grande escala, a terra de Canaã tornou-se uma espécie de Sodoma e Gomorra de âmbito nacional (...) Alguns arqueólogos que têm escavado as ruínas das cidades dos cananeus admiram-se de Deus não as haver destruído há mais tempo[5]

Para Dawkins criminalizar Deus, o primeiro passo é vitimizar os cananeus, como se eles fossem um povo encantador, que foi atacado somente por adorar o deus errado. Esta visão completamente distorcida dos fatos violenta a inteligência de qualquer estudioso daquelas culturas, além de distorcer de forma mais grosseira ainda o texto sagrado, que em momento nenhum diz que o motivo que levou os cananeus a morrerem foi que adoravam o deus errado. Se esta fosse a razão, por que Deus não mandou Israel exterminar o mundo inteiro da época, já que todos os outros povos também adoravam falsos deuses?

A razão, porém, da ordem de destruição ser específica para os cananeus foi “para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o Senhor vosso Deus” (Dt.20:18). Ou seja: o foco em questão não era a adoração aos falsos deuses, mas as abominações que eles praticavam em nome destes falsos deuses[6]. Existiam milhões de pessoas naquela época que adoravam falsos deuses, mas não chegavam àquele nível de crueldade dos cananeus, e Deus jamais mandou destruí-las. Os cananeus foram punidos pelas suas maldades, não pela opção religiosa de qual deus seguir. Eles não eram os mocinhos da história: eram verdadeiros vilões, como os nazistas e os jihadistas.

O paralelo mais próximo às cidades cananitas é, certamente, Sodoma e Gomorra. Naquelas cidades (também condenadas por Deus à destruição) a imoralidade, a devassidão e a perversão sexual chegaram a tal ponto que os homens dali não conseguiam ficar sem abusar sexualmente de qualquer outro homem que visitasse aquela terra ou estivesse passando por ali de viagem (Gn.19:5).

Tanto em Canaã como em Sodoma o liberalismo chegou a tal ponto que ninguém tinha mais nenhum pudor; a homossexualidade, a zoofilia, o incesto, o estupro e a prostituição eram considerados normais e era simplesmente impossível tentar levar uma vida decente em meio a um povo tão ímpio, que não seguia nenhum princípio moral. Uma intervenção sobrenatural era totalmente necessária. Mesmo assim, é impressionante a benignidade, a longanimidade e a misericórdia de Deus ao longo de todo o processo, mesmo quando um juízo tinha que ser executado. Vemos isso no próprio relato da destruição de Sodoma, na interessante conversa entre Jeová e Abraão:

Gênesis 18
23 Abraão aproximou-se dele e disse: "Exterminarás o justo com o ímpio?
24 E se houver cinqüenta justos na cidade? Ainda a destruirás e não pouparás o lugar por amor aos cinqüenta justos que nele estão?
25 Longe de ti fazer tal coisa: matar o justo com o ímpio, tratando o justo e o ímpio da mesma maneira. Longe de ti! Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?"
26 Respondeu o Senhor: "Se eu encontrar cinquenta justos em Sodoma, pouparei a cidade toda por amor a eles".
27 Mas Abraão tornou a falar: "Sei que já fui muito ousado a ponto de falar ao Senhor, eu que não passo de pó e cinza.
28 Ainda assim pergunto: E se faltarem cinco para completar os cinquenta justos? Destruirás a cidade por causa dos cinco? "Disse ele: "Se encontrar ali quarenta e cinco, não a destruirei".
29 "E se encontrares apenas quarenta?", insistiu Abraão. Ele respondeu: "Por amor aos quarenta não a destruirei".
30 Então continuou ele: "Não te ires, Senhor, mas permite-me falar. E se apenas trinta forem encontrados ali?" Ele respondeu: "Se encontrar trinta, não a destruirei".
31 Prosseguiu Abraão: "Agora que já fui tão ousado falando ao Senhor, pergunto: E se apenas vinte forem encontrados ali?" Ele respondeu: "Por amor aos vinte não a destruirei".
32 Então Abraão disse ainda: "Não te ires, Senhor, mas permite-me falar só mais uma vez. E se apenas dez forem encontrados?" Ele respondeu: "Por amor aos dez não a destruirei".
33 Tendo acabado de falar com Abraão, o Senhor partiu, e Abraão voltou para casa.

Você consegue imaginar alguém mais misericordioso, compassivo e piedoso quanto Deus, que mesmo diante de uma cidade completamente promiscua, inteiramente depravada e absolutamente irrecuperável, promete poupá-la por amor a apenas dez justos em meio a tantos ímpios? Eu não sei você, mas eu com certeza não teria tanta paciência. E se você pudesse voltar no tempo e ver com seus próprios olhos a completa perversão moral da cidade e a opressão sofrida pelos poucos justos que ali restavam, muito provavelmente não teria também.

Aparentemente, nem o próprio Abraão tinha tanta benignidade e misericórdia assim, senão não teria começado nivelando por cinquenta justos na cidade, para depois ir baixando aos poucos. Quando a conta chegou aos dez, Abraão deve ter pensado: “puxa, a coisa está feia mesmo!”. E Deus ainda salvou da cidade a Ló e sua família, os únicos justos dali. Dawkins, inacreditavelmente, considera este mesmo Deus veterotestamentário, que é “misericordioso e compassivo, paciente e transbordante de amor” (Sl.145:8), desta forma:

“O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo. Aqueles que são acostumados desde a infância ao jeitão dele podem ficar dessensibilizados com o terror que sentem”

Sim, é estarrecedor o espantalho que Dawkins faz do Deus do Antigo Testamento. Somente aqueles que estão acostumados desde a infância ao jeitão de Dawkins podem engolir tamanha leviandade.

Mas e quanto aos cananeus? Deus não lhes deu uma chance, como fez com os sodomitas?

Sim, e muitas. Na verdade, embora o povo cananeu fosse tão ou mais ímpio que o de Sodoma, Deus lhe deu chances atrás de chances, por um período de nada a menos que quatrocentos anos:

“Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos... e tornará para cá; porque a medida da injustiça dos Amorreus [um dos clãs cananeus] não está ainda cheia” (Gênesis 15:13,16)

Pense nisso. Mesmo com o povo cananeu sendo tão ímpio e merecedor do juízo divino, Deus espera pacientemente por quatrocentos anos, dando-lhes oportunidade de arrependimento, chance atrás de chance. E ele não ordenou ataque nenhum sem que antes a medida de iniquidade dos cananeus se enchesse, i.e, se tornasse tão grande que uma intervenção não seria apenas importante, mas obrigatória. A imoralidade, impiedade e desumanidade haviam atingido tão alto limite em Canaã, que não fazer nada a respeito seria uma omissão tão grande quanto se os Aliados não tivessem reagido à Hitler.

Douglas Reis corretamente destacou:

“Se uma mulher descobrisse um câncer de mama em estágio inicial, não iria operar antes que ele se ‘instalasse’ irreversivelmente pelo corpo? Por mais traumática ou sofrível que uma cirurgia como essa venha a ser, perder uma mama e continuar viva não é melhor do que definhar até a morte? Os cananitas eram o câncer. Deus os amava, mas deixá-los vivos seria o mesmo que contaminar a humanidade com a sua influência maléfica. Pense em como o mundo não estaria pior se Deus não interviesse, periodicamente, refreando o pecado e punindo os culpados”[7]

Então a guerra começou.

O ateu deve pensar que agora é a hora que Deus mandou matar todo mundo. Mas espere um momento. Uma pesquisa bíblica mais profunda nos mostra claramente que a ordem inicial (o propósito) de Deus não foi o de exterminar ninguém, senão o de os expulsar da terra. William Lane Craig fala sobre isso nos seguintes termos:

“A ordem que Deus deu a Israel a princípio não era que eles exterminassem os cananitas, mas que os expulsassem da terra (...) Canaã estava sendo dada a Israel, a quem Deus havia retirado do Egito. Se as tribos cananitas, vendo os exércitos de Israel, tivessem simplesmente escolhido fugir, ninguém teria sido assassinado, afinal. Não havia nenhuma ordem para perseguir e abater as pessoas cananitas. É, portanto, completamente errônea a caracterização da ordem de Deus a Israel como uma ordem para cometer genocídio. Em vez disso era em primeiro lugar uma ordem para expulsar as tribos do território e ocupá-lo. Somente aqueles que permanecessem deveriam ser completamente exterminados. Não havia necessidade de que todos morressem nesta situação”[8]

Então, se o objetivo não era o de matar, e sim o de expulsar da terra, por que pessoas foram mortas? E por que há os relatos onde Deus manda matar? Estes relatos obviamente se relacionam não a todo o povo, mas sim àqueles que se recusaram a fugir, ou seja, aos que quiseram ir à guerra contra os israelitas. Em uma guerra era normal os civis fugirem ou ficarem para trás, enquanto os militares vão à batalha. Então a ordem de Deus basicamente era: “mate qualquer um que lutar contra vocês”.

Isso não é absolutamente nada diferente da regra que regeu qualquer guerra na história da humanidade. Mais uma vez, temos que frisar que se alguém se opõe a isso terá que se opor também a todas as guerras onde os soldados receberam ordens de matar qualquer um que lutasse no outro lado, incluindo as guerras legítimas que comumente se crê que foram necessárias, dentre as quais destaquei a guerra contra os nazistas, e demonstrei que neste mesmo contexto e conceito a guerra contra os cananeus também era necessária e justificável.

Então os ateus falarão das crianças, é claro. “Mas Deus não mandou matar as crianças?”. Depende do contexto em que essa frase é feita e do sentido para o qual ela se aplica. Dentro daquele contexto específico que os textos bíblicos dizem respeito, a ordem era de matar qualquer criança que lutasse contra os israelitas, e não qualquer criança em absoluto (o que incluiria os que se recusaram a lutar, assim como os fugitivos).

Quando um comandante de um exército diz: “entre e acabe com eles”, ele está querendo dizer que é para atacar qualquer soldado inimigo, independentemente se o soldado em questão é grande ou pequeno, se é homem ou mulher, se é velho ou jovem. Qualquer um que porte uma espada é uma ameaça em potencial, e ainda mais em uma batalha corpo a corpo (como eram travadas antigamente) era praticamente impossível conseguir ter a exata percepção do sexo ou idade de quem está empunhando uma espada em sua direção.

No calor da batalha, o soldado primeiro pensa em se defender e em atacar o adversário instintivamente, e só depois vai perceber se este inimigo era assim ou assado. Um comandante que dissesse aos seus soldados para selecionar que tipo de soldados que poderia matar estaria fadado à perda da guerra e ao completo fracasso, pois até um soldado ter a noção exata de como é o seu adversário (geralmente equipado com capacetes e peitorais que dificultam ainda mais a identificação) já teria sido atingido e morto.

As regras gerais, então, eram somente uma ordem de matar qualquer um que lhes fosse uma ameaça, independentemente de sexo, idade, altura, cor de pele, etc. As terminologias “desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito” (1Sm.15:3), são hipérboles frequentemente utilizadas pela Bíblia em outras circunstâncias onde o sentido é somente o senso geral de todos, ou de qualquer um, que neste caso específico representa uma ameaça. É um hebraísmo que quer dizer: “na hora da guerra, mate qualquer pessoa que queira matar você”.

Embora em alguns casos exércitos tenham usado crianças e mulheres para lutar, é óbvio que nem de longe a hipérbole presente nestes textos bíblicos gerais implica que houve mesmo alguma criança ou mulher que tenha lutado do outro lado e morrido. É por isso que não vemos sequer um único versículo bíblico mencionando uma criança morta por um soldado israelita em uma guerra. Crianças e mulheres foram usadas para lutar na Guerra do Paraguai, e infelizmente os soldados brasileiros tiveram que matá-las, mas nada indica que aqueles povos fizessem o mesmo em suas próprias batalhas.

Além disso, se alguma criança realmente morreu em batalha, sob a perspectiva judaico-cristã ela morreu salva, pois delas pertence o Reino dos céus (Mt.19:14). Isso seria melhor do que se tivessem continuado em vida em meio àquele povo iníquo e imoral, se degradando e se pervertendo entre si, oprimindo o próximo, causando o sofrimento alheio e por fim morrendo a morte eterna, sem salvação. A morte na batalha seria menos ruim do que o prosseguimento da vida em meio àquele povo desumano, que certamente perverteria a criança e a tornaria como os seus pais.

Então, em resumo, o tão terrível “genocídio” que os neo-ateus tanto esbravejam é isso:

• Os cananeus eram o povo mais ímpio da época, desumano, cruel, sanguinário, assassino e imoral. Alguém tinha que colocar um ponto final nisso.

• Deus, com enorme misericórdia, ainda esperou por nada a menos que quatrocentos anos, dando chance após chance de arrependimento aos cananeus, que terminantemente se recusaram a se arrepender e a mudar de vida.

• Depois de tantas chances dadas e recusadas, chegou um momento em que a impiedade deles chegou a um limite de crueldade insuportável onde era impossível que aquilo tudo continuasse, assim como era impossível continuar permitindo que Hitler matasse judeus.

• Deus então decidiu usar o seu povo, Israel, como um instrumento de juízo contra aquelas nações, para as expulsarem da terra.

• Aquelas nações, no entanto, se recusaram a deixar a terra e foram à luta contra Israel.

• Deus, então, deu a ordem de matar qualquer pessoa que fosse à luta contra os israelitas, expressado por meio da hipérbole: “desde o homem até o menino”.

• Como resultado, todas as pessoas que os cananeus usaram para guerrear contra os israelitas foram mortas. Não há registro, porém, que eles tenham usado mulheres ou crianças na batalha, nem registros de que os soldados israelitas tenham matado alguma delas.

• A missão da conquista da terra foi cumprida com êxito, colocando fim à opressão e ao terror perpetuado pelos cananeus, que já durava séculos.

Agora os neo-ateus já podem parar de choramingar esbravejando e espumando pelos dentes que “a Bíblia é genocida!!!”. Genocídio mesmo foi o que os Estados oficialmente ateus fizeram no século passado, exterminando mais de 100 milhões de pessoas inocentes, que não tinham feito nada contra ninguém. Falaremos disso em um minuto.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)

(Trecho extraído do meu livro: "Deus é um Delírio?")


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[1] Alister McGrath, O Delírio de Dawkins.
[4] Só os fortes entenderão.
[5] Manual Bíblico de Halley, p. 157.
[6] Em Levítico 20:23 Deus deixa isso ainda mais claro, dizendo: “Não sigam os costumes dos povos que vou expulsar de diante de vocês. Por terem feito todas estas coisas, causam-me repugnância”. Todas estas coisas, que o texto se refere, diz respeito ao contexto daquele capítulo que fala sobre os vários tipos de imoralidade sexual, de perversão e de crueldade, que eram praticados entre os cananeus.

1 comentários:

  1. Ótimo trabalho você faz, amigo. Não desanime nunca, pois este espaço é um poderoso instrumento contra a apostasia que reina em nossos dias.

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