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O trecho abaixo é extraído de meu livro: "Deus é um Delírio?"
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No capítulo 11 deste livro
comentei brevemente sobre erros teológicos que acabam maculando a imagem de
Deus e do Cristianismo aos olhos dos descrentes. Naturalmente, como este não é
um livro apologético contra heresias, eu comentei apenas brevemente sobre
alguns dos que eu considero os principais erros, mas penso ser relevante, em um
livro como esse, uma explanação maior sobre o destino dos povos não-alcançados
(ou seja, daquelas pessoas que morreram sem terem ouvido falar de Jesus por toda
a vida), uma vez que apenas escrevi dizendo que eles não estão todos fadados ao
inferno inevitavelmente, mas não disse por que e nem de que forma que as coisas
poderiam ser diferentes. Boa parte deste estudo sobre o tema é extraído do
Apêndice 1 de meu livro “Calvinismo ou Arminianismo – Quem está com a Razão”,
com alguns acréscimos que eu achei pertinentes.
O apóstolo Paulo tratou
dos povos não-alcançados em sua epístola aos romanos, nas seguintes palavras:
“Todo
aquele que pecar sem a lei, sem a lei também perecerá, e todo aquele que pecar
sob a lei, pela lei será julgado. Porque não são os que ouvem a Lei que são
justos aos olhos de Deus; mas os que obedecem à lei, estes serão declarados justos. De fato, quando os gentios, que não
têm a lei, praticam naturalmente o que
ela ordena, tornam-se lei para si mesmos, embora não possuam a lei; pois
mostram que as exigências da lei estão gravadas em seus corações. Disso dão
testemunho também a consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora
defendendo-os. Isso acontecerá no dia em que Deus julgar os segredos dos
homens, mediante Jesus Cristo, conforme o declara o meu evangelho”
(Romanos 2:12-16)
Isso nos mostra claramente que
há pessoas que nunca ouviram a lei, mas que seriam declaradas justas (v.13). Paulo usou o verbo justificar, no grego dikaioo,
que, de acordo com a Concordância de Strong, significa:
1344 δικαιοω dikaioo
de 1342; TDNT - 2:211,168; v
1) tornar justo ou com deve ser;
2) mostrar, exibir, evidenciar alguém ser justo, tal como é e
deseja ser considerado;
3) declarar, pronunciar alguém justo, reto, ou tal como deve ser.
À luz das 39 ocorrências do
termo no NT, vemos que ele tem o sentido de declarar
justo (justificar), como nos textos abaixo:
“Portanto,
ninguém será declarado justo
[dikaioo] diante dele baseando-se na
obediência à lei, pois é mediante a lei que nos tornamos plenamente conscientes
do pecado” (Romanos 3:20)
“Pois
todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados [dikaioo]
gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus”
(Romanos 3:23-24)
“Pois
sustentamos que o homem é justificado
[dikaioo] pela fé, independente da
obediência à lei” (Romanos 3:28)
“Visto
que existe um só Deus, que pela fé justificará
[dikaioo] os circuncisos e os
incircuncisos” (Romanos 3:30)
Sendo assim, a ocorrência do
termo em Romanos 2:13 nos mostra que é possível que alguém que nunca ouviu o
evangelho seja dikaioo (declarado
justo; justificado). Mas como? Paulo diz que é praticando naturalmente o que a
lei moral ordena, mesmo sem ter uma lei escrita (Rm.2:14-15). Essa “lei moral”
se refere à lei de consciência “gravada em nossos
corações” (Rm.2:15), que todos nós possuímos, e é por meio dela que
sabemos aquilo que é moralmente certo e aquilo que é moralmente errado.
Os israelitas já sabiam que o
assassinato era proibido antes de Moisés descer do monte com as duas tábuas
dizendo que era proibido matar. Isso porque em suas consciências eles podiam
distinguir o certo do errado. Conceitos morais como honrar pai e mãe, não
assassinar, não roubar, não adulterar e não dar falso testemunho existem em
todas as civilizações, mesmo naquelas que nunca tiveram a lei de Moisés ou o
evangelho de Jesus Cristo. Mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Jesus sabem
que estuprar um bebê é algo moralmente repugnante, porque possuem uma
consciência que lhes diz isso (já escrevemos largamente sobre isso no capítulo
7 deste livro, de modo que não é necessário abordarmos isso mais amplamente).
Essa consciência moral foi
implantada por Deus no coração de cada pessoa a despeito de qualquer lei
escrita (Rm.2:14), e Paulo disse que é possível ser justificado (dikaioo) obedecendo-a, caso se não
possua a lei escrita. Em outras palavras, Deus propiciou um meio pelo qual
aqueles que nunca ouviram a Palavra escrita (a lei de Moisés ou o evangelho
cristão) possam ser justificados, que é a obediência à lei moral.
A salvação permanece sendo pela
graça e o salvador continua sendo Deus, mas a ponte que liga o pecador à graça,
que no caso de quem conhece Jesus é a fé nEle (“temos acesso pela fé a esta graça” – Rm.5:2; “pela graça sois salvos, por
meio da fé” – Ef.2:8), para quem não o conhece Deus sujeitou à própria
consciência moral, ao invés de deixar-lhes sem uma “ponte” e sem oportunidade
de salvação. Desta forma, os bilhões que nunca ouviram falar de Jesus na vida
não estão todos automaticamente condenados, mas tem uma chance pela graça e
misericórdia de Deus.
Mas há ainda outra questão
aberta: e quanto aos que ouviram?
Sabemos que uns nasceram em lar evangélico e desde cedo desfrutaram da Palavra
de Deus, outros viveram em lar não-cristão mas puderam ouvir alguma coisa da
Palavra, e outros viveram em países afastados e poucas vezes ouviram falar de
Jesus. Sendo assim, não haveria mais chances de uma pessoa aceitar Jesus e ser
salvo, em relação a outra pessoa que teve menos oportunidade? Afinal de contas,
o que sempre ouviu o evangelho não tem mais chances de aceitá-lo e vivê-lo do
que aquele que ouviu menos? Não estamos falando de possibilidades desiguais,
que tornariam o livre-arbítrio injusto?
Isso tudo seria verdade se não
fosse por uma coisa: o princípio bíblico
da proporcionalidade. Deus pensou até nisso e decidiu, em sua sabedoria,
que aquele que ouviu mais fosse julgado com maior rigor em relação àquele que
ouviu menos. Os dois não serão julgados com o mesmo rigor. Isso fica claro a
partir da leitura de Lucas 12:48, que diz:
“A
quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito
mais será pedido” (Lucas 12:48)
Deus vai cobrar muito mais de
quem teve mais conhecimento. Isso ocorre tanto na questão da salvação como
também na questão da perdição. Jesus disse que “aquele
servo que conhece a vontade de seu
senhor e não prepara o que ele deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites, mas aquele que não a conhece e pratica coisas
merecedoras de castigo, receberá poucos
açoites” (Lc.12:47-48). A lei da proporcionalidade é clara e evidente,
não apenas aqui, mas em diversos outros textos bíblicos. Jesus citou o maior
rigor com que Corazim e Betsaida serão julgadas no dia do juízo em relação às
cidades de Tiro e de Sidom, porque Corazim e Betsaida viram de perto os
milagres de Cristo:
“Ai
de você, Corazim! Ai de você, Betsaida! Porque se os milagres que foram
realizados entre vocês tivessem sido realizados em Tiro e Sidom, há muito tempo
elas se teriam arrependido, vestindo roupas de saco e cobrindo-se de cinzas.
Mas eu lhes afirmo que no dia do juízo haverá menor rigor para Tiro e Sidom do
que para vocês” (Mateus 11:21-22)
Quando Jesus enviou seus
discípulos a pregarem nas cidades, ele disse que as que rejeitassem seriam
julgadas com maior rigor do que Sodoma e Gomorra, porque tiveram mais oportunidade
de ouvir a Palavra:
“Se
alguém não os receber nem ouvir suas palavras, sacudam a poeira dos pés, quando
saírem daquela casa ou cidade. Eu lhes digo a verdade: No dia do juízo haverá
menor rigor para Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade” (Mateus
10:14-15)
O mesmo princípio da
proporcionalidade é aplicado aos líderes religiosos. Eles serão julgados com
maior rigor, porque são eles que têm a obrigação de ministrar a Palavra, e,
consequentemente, de ter mais conhecimento dela:
“Meus
irmãos, não sejam muitos de vocês mestres, pois vocês sabem que nós, os que
ensinamos, seremos julgados com maior rigor” (Tiago 3:1)
Em outras palavras, o princípio
da proporcionalidade equilibra a
questão. Se por um lado é verdade que um teve mais conhecimento, por outro lado
também é verdade que este será julgado com maior rigor do que aquele que
recebeu menos. Uma analogia que podemos citar é de uma partida de futebol entre
um time da 1ª divisão e um time da 3ª divisão. Teoricamente, o time da 1ª
divisão leva vantagem por ter uma equipe mais forte, e o jogo poderia ser
considerado “injusto”. Mas suponhamos que esta equipe precise ganhar de pelo
menos 3 a 0 da outra para se classificar. Isso volta a equilibrar a balança, em
uma condição onde ambos são iguais. Se por um lado um time é mais forte, por
outro lado ele precisará fazer mais para vencer.
Esta lei de proporcionalidade
retira toda e qualquer acusação de injustiça na questão do livre-arbítrio, e
coloca todos sob um mesmo patamar final. Deus nunca trabalhou de maneira
injusta e arbitrária, ele sempre trabalhou de forma justa e igualitária, mesmo
que a igualdade atue mediante fatores que equilibram. O pensamento
resumidamente exposto nas linhas acima é seguido de perto pelos arminianos
clássicos como Orton Wiley, que afirmou que “a
Palavra de Deus é, em certo sentido [através da lei moral], universalmente
proclamada, mesmo quando não registrada em uma língua escrita”[1].
Roger Olson disse também que “o Espírito Santo opera nos corações e mentes de todas as
pessoas até certo ponto, dá-lhes consciência das expectativas e provisão de
Deus, e as chama ao arrependimento e à fé. Deste modo, a Palavra de Deus é, em
certo sentido, pregada universalmente, mesmo quando não registrada em uma
linguagem escrita. Os que ouvem a proclamação e aceitam o chamado são
conhecidos nas Escrituras como os eleitos. Os réprobos são os que resistem ao
chamado de Deus”[2].
Em resumo, o livre-arbítrio não
torna nada injusto ou arbitrário. Ele poderia
ser injusto se estivesse desassociado do princípio da proporcionalidade,
que equilibra as coisas. Mas, quando um está ligado ao outro, temos um perfeito
equilíbrio, justo para todos, em uma medida equivalente. Vale ressaltar, por
fim, que isso de modo algum anula a necessidade
do sacrifício de Jesus para a salvação de toda a humanidade. As pessoas salvas que morreram antes dos tempos de Jesus também não
podiam crer que Jesus “morreu pelos nossos pecados
e ressuscitou para a nossa justificação” (Rm.4:25), mas eu não conheço
nenhum – nem mesmo o calvinista mais fanático – que sustente a tese de que
todos esses que morreram antes de Jesus estão perdidos para sempre!
Da mesma forma, os bebês que
morreram antes de alcançar a idade da razão também não criam em Jesus, mas
mesmo assim são poucos os que são tão insanos ao ponto de afirmarem que todos
esses bebês que morreram sem poder aceitar a Jesus estão no inferno. Esses
bebês e os que viveram antes de Jesus, assim como os povos que ainda não foram
alcançados, de fato não criam em Jesus, mas também não o rejeitavam. Há uma
diferença entre não crer em Jesus e rejeitar a Jesus. Um índio que nunca
teve contato com o homem branco pode não crer em Jesus, não porque o rejeita, mas porque nunca ouviu falar
dele – algo bem diferente de um Richard Dawkins, por exemplo!
Jesus deixou claro que “se eu não tivesse vindo e lhes falado, não seriam
culpados de pecado; agora, contudo, eles não têm desculpa para o seu pecado”
(Jo.15:22). Ele também disse que, “se vocês fossem
cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a
culpa de vocês permanece” (Jo.9:41). De que modo que isso não anula a necessidade do sacrifício de Cristo?
Porque se Jesus não tivesse morrido numa cruz e ressuscitado dos mortos, nem
mesmo essas pessoas poderiam ser salvas por obedecerem à lei de consciência
moral! O sacrifício voluntário de Jesus foi o que possibilitou que pessoas
fossem salvas – tanto os israelitas que viveram antes dele e obedeceram a lei,
como também todos os que nunca ouviram falar de Jesus e obedeceram a lei moral,
e todos os bebês.
Se não fosse por Jesus, ninguém
seria salvo. Com Jesus, a salvação é possível. O propósito é que todos creiam,
mas, se isso não for possível a alguém (pelas razões já explicitadas), não
significa que ela está necessariamente perdida
– a não ser que ela quebre a lei moral que Deus lhe deu. Assim também, aquele
que rejeita deliberadamente o que
Jesus fez por ele, mesmo depois de saber o
que Jesus fez por ele, não tem como ser salvo, pois está fechando para si mesmo
a porta da salvação, cavando um abismo entre si mesmo e Deus.
First!
ResponderExcluirEngraçado que essa doutrina sua é muito semelhante à doutrina católica da salvação dos não-cristãos.
ResponderExcluirA doutrina da Igreja Romana sobre a salvação dos não-católicos oscilou ao longo dos séculos, como eu mostrei neste artigo:
Excluirhttp://heresiascatolicas.blogspot.in/2015/12/afinal-ha-salvacao-fora-da-igreja.html